quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Parvo


Do amor. Da tempestade que abana todos os poros, dos sonhos invadidos, da pele molhada, da impaciência, da agitação, da falta de senso, do sono esquisito, da fome de agarrar, dos nervos, do esperar, do sorrir sem porquê, do acordar aquecido, do crepitar dentro, do olhar baralhado, da mão suada, do nariz detective, dos lábios mordidos. Do amor. Parvo.

Eros and Psyche - statue Antonio Canova

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Abriguei-me

Abriguei-me junto ao mar, mar salgado, meu amigo de sempre, que me ouve sem me interromper, que me atenta sem me repreender, que me abraça sem cobranças, que me acalma sem me aconselhar, que me faz sorrir sem que me aperceba. Meu amigo salgado, abrigo doce.







sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Cemitério de Guarda-Chuvas


Uma vareta para um lado, outra para outro, e outra ainda cravada no intervalo das pedras da calçada. A chuva de prata confunde-se com o metal. Um bocado de pano escuro, talvez castanho, encharcado. Vvvvvvvvvvvvvvvvv… Vvvvvvvvv... Abana, abana ao vento, suspenso entre as varetas. 
Chove tanto… A rua é um rio. A passadeira mal se vê na tarde escura. 
Mais um chapéu pelos ares. Parece um balão sem fio preso na mão do menino. Os limpa pára-brisas para lá, para cá, para lá, para cá. Tchuc-tchuc-tchuc-tchuc…

Os vidros embaciados deixam ver os faróis vermelhos, reluzentes, no carro da frente. A cortina de água bate nos vidros. Olha ali outro! Outro chapéu-de-chuva abandonado! Os braços de prata inertes no chão, cada um para seu lado. Está meio aberto e o pano rasgado é azul-turquesa [deve ser de senhora]. O cabo de madeira é em tons de mel e tem algo dourado [é de senhora, com toda a certeza]. Ali jaz, ao frio, à chuva, ao vento. Sozinho, abandonado, molhado, perdido, esquecido para sempre. Morto e não enterrado. Devia haver lápides: “aqui jaz o guarda-chuva que chegou a ser feliz em muitas mãos. Eterna saudade.”

A rua é um cemitério de guarda-chuvas. Chove. Pedaços de guarda-chuvas sem dono espalhados pelas pedras da calçada. Chove. Chove mesmo muito. O prateado, o cinzento, o azul-turquesa, os faróis vermelhos sumidos. Tchuc-tchuc-tchuc-tchuc… Os carros em fila passam por eles, indiferentes. Poças de água no cemitério dos guarda-chuvas.

Por que abandonam as pessoas os seus chapéus de chuva outrora queridos? Eles, que sempre protegeram as pessoas da chuva. Eles, que nunca lhes falharam. E à primeira que lhes falham, as pessoas largam-nos na rua. Largam-nos da mão. Literalmente. Desumanos!

“Aqui jaz o teu guarda-chuva triste e abandonado”
[espera, não chores, ele já vem, já sei que queres ir para casa, tens saudades daquelas mãos, mas tens que ter calma, não posso parar o carro assim sem mais nem menos, compreendes?, sei que esta não é a tua rua, nunca te vi por aqui, não chores por favor, queres que te faça um chá?]

Um cemitério de guarda-chuvas sem flores nem jeito nenhum.

As pessoas deviam levar os seus guarda-chuvas doentes para casa. Deviam tratar deles com carinho. Uma compressa humedecida em água morna, mercurocromo nas feridas, uma gaze na pega de madeira, ligaduras nas varetas contorcidas e pensos ou adesivos no tecido rasgado. Deviam levar-lhes flores com cartõezinhos. “Boas melhoras!” E não pára de chover. 
[chá de quê?]

Fotografia: Ana Catarina Santos

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Comprei um carrossel

E dá voltas e voltas. E sobe. E a música embala. Giro. Girando. Ondulando. E desce. E curva. Gira. E as crianças riem. E o chocolate quente. O gorro de lã. A neve. E o frio. E a música de corda. E as vozes nas ruas. E ele sobe. E gira. E dá mais uma volta. Cheira a chocolate. E as luvas. E o nariz vermelho mordido pelo frio. E as gargalhadas. E as luzes nas montras. E mais uma volta. A caixa de música que se cala. O vendedor de caixas aproxima-se do balcão. As crianças calam-se. O vendedor, de avental verde. Sorri. Levanta a caixa com a mão esquerda. Gira o pulso. Firme, firme. Dá à roda mais uma vez. Mão direita firme. E mais outra e outra ainda. A caixa de música volta a tocar. Música mais rápida. As luzes mudam de cor. O avental verde afasta-se. As crianças riem. O chão gelado. E a tenda a vender crêpes. E a outra dos queijos. E o casal de pé a comer "escargots". Falam francês. Neve. Vidros salpicados. O carrossel parou. A música de corda também. O avental verde. Roda. Roda. Roda. Roda. Música. Cachecol. Nariz frio. Frio. Cheira a chocolate. Un chocolat chaud, s'il vous plaît! Não sinto as moedas. Dedos rijos. O vapor da minha respiração. Neve. Merci. Música. Comprei um carrossel.




sexta-feira, 30 de novembro de 2012

À espera

Passo os dias à espera. À espera que algo aconteça.
À espera que a água aqueça para o banho. À espera que páre de chover. À espera de um telefonema. À espera de uma resposta. À espera de uma entrevista. À espera de taxi. À espera que me atendam ao balcão. À espera do café quente que depois da espera quase vem frio e desmaiado. À espera nas filas de trânsito. À espera para o início de uma reunião. À espera do avião. À tua espera. À espera.
Tantas horas de espera. Todas as horas juntas de espera dão muito tempo. Tempo cheio de espera. Tempo de espera. Tempo de(s)espera.
Os dias de espera todos juntos davam outra vida.
Passo os dias à minha espera.


Coombs







sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Amiquê?

Uma das modernices mais populares é o pedido de amizade no Facebook. “O não-sei-quantos enviou-te um pedido de amizade”. E se eu aceitar, com apenas um clique, somos “amigos”. Já. Amigos instantâneos. Não é preciso esperar uns minutos. É imediato. Nem é necessário sequer juntar água ou descongelar no micro-ondas. “O não-sei-quantos agora é teu amigo”. Zás-trás! Mais um “amigo”.
Às vezes o pedido de amizade modernaço e instantâneo vem acompanhado por uma mensagem pessoal. Há dias recebi uma mensagem de uma pessoa que me pedia que aceitasse o “pedido de amisade” que tinha acabado de enviar. Li, reli. Pedido de “amisade”? “Amisade”? Com “s”?!
Não posso ser amiga de quem não sabe escrever amizade…
Quem troca o “z” pelo “s” na amizade não sabe do que fala. Quem troca o “z” pelo “s” na amizade há-de trocar-se também nos afectos. Quem troca o “z” pelo “s” na amizade é bem capaz de trocar “um-amigo” por “um-umbigo”.
As letras (as palavras) fazem a diferença. Ditas e escritas. Os afectos também. E a amizade não é apenas retórica. Ponto final parágrafo.


sábado, 17 de novembro de 2012

Ontem era para ter estado calada


Ontem era para ter estado de folga. Deitei-me tarde, já de madrugada, com a expectativa de que no dia seguinte não iria trabalhar, apesar de ser dia de semana. Relaxa-se de maneira diferente. A almofada tem outro cheiro, o colchão abraça-me melhor e os lençóis são mais suaves. 
Dormi bem, acordei descontraída. Estava a precisar de uma boa noite de sono. Mas uns telefonemas e mensagens em cima do meio-dia terminaram com a minha folga e com a minha boa disposição. Tinha que ir trabalhar a seguir ao almoço. 
Fiquei amuada e rezingona.
A folga deixou de ser folga. O dia passou a ser ainda mais cinzento. O meu dia passou a ser o dia de folga que tinha acabado de o ser e que tinha acabado de se transformar na mais irritante sexta-feira à tarde de chuva e trabalho.
Não jantei. Trabalhei até tarde na redacção. Continuava rezingona e amuada.
Recebi um telefonema de uma amiga, à noite. Desabafei todos os meus azares: de quase ter estado de folga, de quase ter tido um fim-de-semana prolongado, de ter deixado de estar de folga, de estar ainda a trabalhar, de não ter sequer jantado. E ainda por cima estava a chover.
- “Estou cansada. Farta!”
Silêncio no outro lado.
A minha amiga é jornalista. Está desempregada.
Silêncio no outro lado.
- “Já viste a tua sorte?”
Silêncio neste lado.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Morse especial

"Não digas nada, dá-me só a mão. Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega. Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega. (...)
Gostava tanto que ma apertasses três vezes, depois eu apertava três vezes, depois tu apertavas quatro vezes, depois eu apertava-te quatro vezes e ficávamos que tempos assim, num morse de namorados. Fantasias. Desejos. Se calhar sou uma pessoa carente. Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo."

António Lobo Antunes, "Migalhas"


"A Catedral" - Auguste Rodin


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Il pleut. Alors on danse.

Il pleut.
Alors on danse.
Je danse.
Et toi?

Jack Vettriano

Quero. Preciso.

Quero.
Preciso.
Só hoje.
Chega-te mais para cá.
Só até adormecer.
Aí, aí mesmo...
Preciso de relaxar.
Só até adorm...





terça-feira, 13 de novembro de 2012

Primeira aula

Incentivada pelo entusiasmo que ganhei com o curso de Poesia Japonesa (e com os livros de Haiku que tenho devorado), perdi a cabeça e atirei-me para uma nova aventura! Comecei ontem a aprender Japonês, propriamente dito. Estou a frequentar um Curso de Língua e Cultura Japonesas.
Ontem fui à primeira aula. Somos poucos, uns sete ou oito, contando comigo.
Estava quentinho na sala, silencioso e acolhedor. Fui recebida com uma vénia. Uma senhora japonesa que sorriu quando entrei na sala e curvou-se ligeiramente, olhando para baixo. Hesitei, não sabia se tinha de fazer o mesmo... Disse apenas boa tarde. Sorri. Mas não baixei a cabeça.
Sentei-me na primeira fila. Abri o caderno novo - sem linhas, só folhas brancas - tirei a esferográfica e, em segundos, esqueci a Merkl, que tinha estado a acompanhar todo o dia, e o Passos Coelho e a crise e a política.
Respirei fundo, como quem oxigena o cérebro. Rodei os ombros para trás, mexi levemente o pescoço. Mudei o "chip". Olhei para ela, à minha frente, enquanto ainda entravam outros alunos.
A minha professora chama-se Yuko. Yuko Kase. Magra, pele branca, cabelo negro, baixa, um metro de sessenta talvez. Vinha de cabelo apanhado com um gancho no alto da cabeça.
Trazia uma saia colorida comprida de roda, abaixo do joelho. Meias grossas de lã, botas castanhas-mel pelo meio da canela. Uma camisola de gola alta cinzenta e um casaquinho de malha também colorido, verde vivo, quase verde bandeira, também de lã, abotoado até ao pescoço.
Dedos finos, mãos delicadas, gestos suaves. Sem jóias. Sem anéis. Sem brincos. Sem colares. E sorriso fácil. Olhinhos de japonesinha. Gosto da Professora Yuko.
Sinto que se abre uma nova janela para mim. Respiro fundo. Gosto desta janela.



domingo, 11 de novembro de 2012

Valsa de Outono

Entrou pela janela e quase não fez ruído, como uma bailarina em palco que nunca se ouve quando toca no chão após o salto. Pousou delicadamente no soalho de madeira e esperou que alguém a visse, que alguém com ela se metesse. Ali ficou, aquecendo-se ao sol de Domingo, tranquila, em silêncio algumas horas. Descansava depois de ter bailado no céu, ao ritmo do vento, uma valsa de Outono.
Observei, desde manhã, como as folhas hoje bailavam nos ares. O céu azul de veludo enquadrava o cenário. Algumas nuvens brancas ao longe, poucas. O palco é o ar, sem barreiras, sem espaço, sem pontos nem contra-pontos. A orquestra é o vento que as leva pela mão.
O ar sopra-lhes por baixo, elas ganham altitude, rodopiam, viram-se, cruzam-se, entrelaçam-se. O vento vira. O ar transforma-se. A dança vira também. E montam uma coreografia criativa sem ensaios. E sobem e descem. E tocam o chão, desafiam quem passeia a pé, escondem-se nos canteiros e nas bermas e nos passeios. Perseguem-se e depois fogem. E o vento sopra do lado de lá e voltam a subir e baralham os pássaros. E tocam-se no ar. Leves, airosas, brincalhonas, atrevidas. E o vento sopra do lado de cá e dão mais uma volta, e outra e outra ainda.
Em silêncio, ao sol. E sobem mais alto e descem em espiral. Uma dança quase oriental, serpenteando. O céu salpicado de tons de castanho, amarelo, quase laranja. Parecem serpentinas vibrantes. Um ritual da natureza.
Como escolhem as folhas de Outono os seus pares?
Uma cansou-se. Entrou-me em casa. Só a vi quando, ao anoitecer, fui fechar a janela. Ali estava, no soalho de madeira, descansando.
Perdeste o teu par?


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Tentação Japonesa

Hoje de manhã fui buscar à prateleira o meu caderninho de Poesia Japonesa. Vou regressar às aulas para fazer o nível 2 do curso. É estranho como há pequenos detalhes que fazem os nossos dias tão mais felizes.




quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Aos ditadores

Cospem verbos. Vomitam palavras que nem conhecem. Espumam insultos. Salivam raivas. Chutam ódios. Batem. Agridem. Ácido. Fecho os olhos. Tapo os ouvidos. Sai, sai, sai daqui! Saiam! Saiam todos. Caras feias. Olhos raiados de podridão. Parasitas. Ocos. Veias eriçadas que querem sair daqueles corpos moribundos. Maldade. Inveja. Poder nojento. Poderzinho autoritário. Sangue podre. Nojo. Ferrugem nas artérias. Mofo. Bolor. Rugas de maldade. Mau hálito. Bafo de tédio. Infelizes. Cadáveres de gente. Almas tristes. Insignificantes. Complexados. Pequeninos. Mentecaptos. Vazios. Mentirosos. Falsos. Desapareçam. Evaporem-se. Vão brincar aos poderzinhos para o crematório. Desapareçam, ditadores! Morram, morram todos. Matem-se uns aos outros. Pestilentos. Morram, velhacos. Gritaria. Párem! Caiam. Acéfalos. Medíocres. Estúpidos. O mundo não vos merece. Adeus.


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Fumo

Cheiro(-te n)essa saudade como lenha numa fogueira
Por dentro
Quente

Um tronco que flutua
Oco
Frio

O rio faz o seu caminho sem olhar para trás
Com a certeza do
Rumo

Cheira a lenha queimada
Nevoeiro
Fumo

Duas margens separadas
Coexistem
Não uma sem a outra

Como a saudade
Consigo cheirar a saudade
Cheiro(-te ness)a saudade





quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Até que eu te deteste

Não vás já.
Mudou a hora.
Mudou a cor da manhã, verás.
Mudei os lençóis, cheira.
Cheira-me.
Mudou a Lua, olha.
Fica mais um pouco
Até que eu te deteste.

Fotografia de Maxim Chelak

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Às segundas

Às segundas quero sempre mudar o mundo.
Planeio na almofada da noite anterior a revolução que estou decidida a fazer daí a poucas horas. Vou acordar mais cedo. Quero apanhar o sol assim que nasça, quero respirar o primeiro ar fresco da manhã, quero agarrar a vida. Quero fazer aquela história que anda há tempos na minha cabeça, quero marcar o almoço prometido e sempre adiado, quero responder às mensagens pendentes, quero ver o filme que gravei há semanas, quero ler mais vinte, trinta páginas que ontem.
Às segundas quero mudar o mundo.
Depois passa.
Já é quase terça.






domingo, 28 de outubro de 2012

Redormir

Gosto de Domingos com mais uma hora de sono.
Podemos repetir para a semana?
Redormimos mais uma hora.
Redormir.

Wake-Up Romantic Lady Be, Peak's Woods

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Noites de Outono


O pior das noites de Outono?
Não ver a outra margem.
Não ver as estrelas.
E tu, que não chegas.

Dead River Fog, fotografia de bgreenlee









terça-feira, 23 de outubro de 2012

Equilíbrio


Equilíbrio.
Estar na balança.
Uns dias lá, outros cá. Mais lá que cá.
Entre o que se quer e o que se tem. O que se quer.
Entre o que se tem e o que não se tem. O que não se tem.
Entre o que és e o que queres ser.
Ser.
Entre o que se pode e o que se sonha.
Sonha.





segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Pecados capitais


Em apenas dois dias ouvi da boca de dois homens dois pecados capitais, no meu manual de pecados.

Um, quando elogiava o cheiro do meu perfume assim que entrei no carro, disse-me que nunca usa perfume. Fixei-o como se tivesse acabado de dizer um palavrão. 
- “Nunca?! Mas nunca, como?!” – perguntei-lhe incrédula. 
- “Simplesmente nunca. Nem tenho um único frasco de perfume em casa”, respondeu-me com um sorriso. “Acho que a última – se calhar a única – vez que usei perfume foi no meu baptismo: a água de colónia que a minha mãe me pôs!” 
Riu-se. Sozinho.
Silêncio.
Apeteceu-me sair do carro naquele instante.

Outro, quando falávamos de comida, de petiscos, de prazeres à mesa, falei-lhe num bom vinho tinto para acompanhar, disse-me com a maior das naturalidades que não gosta de vinho, não bebe vinho.
- “Mas não bebes vinho, como? No dia-a-dia? Durante o trabalho?”
- “Não, não, nunca bebo vinho. Nem em ocasiões especiais nem em festas.”
Silêncio.
- “Mas por princípio?!”
- “Não, não gosto nem do cheiro”.
Hesitei.
- “És muçulmano?”
- “Não, não” – ri-se. “Só não gosto mesmo de vinho.”
Riu-se. Sozinho.
Silêncio.
- “Mas podes beber tu.”


Pintura de Jack Vettriano



terça-feira, 16 de outubro de 2012

Nos 90 de Agustina

Recebeu-me na sua casa do Porto, sentada na poltrona verde no canto da sala. O gato preto refastelado ocupava-lhe o colo farto. Entrei. Rasgou um sorriso.
"Gosta de gatos?"
Foi, afinal, ela a disparar a primeira pergunta.
"Adoro!"
"Então pode entrar e sentar-se. Vamos lá conversar!"
Foi uma das entrevistas que mais me marcou até hoje. 
Parabéns Agustina!


sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Bestas no altar

Não sou frequentadora de Igrejas mas fui a uma missa há uns dias para assinalar uma data especialmente difícil para a minha família. Não era uma Igreja qualquer, era a Sé de uma capital de distrito.

Dois ou três minutos depois da hora prevista lá veio o Padre. Entrou sozinho, vestes brancas, verdes e douradas. Não olhou para quem estava. Não viu se eram mulheres ou homens, não viu se havia crianças ou velhos. Não viu se havia gente nova ou apenas os rostos habituais.

Não vou abordar aqui questões religiosas, de crença, devoção ou dúvida. Vou debruçar-me apenas nas questões de cidadania, civismo, educação, enfim, vida em comunidade. Respeito.

Não sei o nome dele, não sei se é Bispo ou se pode vir a ser Papa. Sei que aquele Padre é um tipo arrogante, antipático, distante, convencido e intolerante.

A Igreja estava quase vazia. Tirando as pessoas da minha família, estariam na Igreja umas oito ou dez pessoas. E era a principal Missa do dia, às 6 da tarde.

Despejou o discurso, como quem lê uma receita em voz alta para si mesmo. Mal se percebia o que dizia. A homilia não tinha nada a ver com nada. Podia ter sido dita naquele dia ou num outro dia qualquer. Podia ter sido dita para aquela “plateia” ou para outra qualquer.

O Padre não fala às pessoas. Não fala com as pessoas. Não fala para as pessoas. O discurso do Padre (da Igreja, diria) não chega às pessoas. Não fala de nada que interesse às pessoas.

Juro que fiz um esforço para tentar perceber o alcance das passagens que leu, se haveria algum paralelismo com o momento angustiante que as pessoas atravessam, as dificuldades, os sacrifícios. Mas não. Nada. As metáforas ou excertos que leu não traduziam nada. É como abrir “ao calhas” a lista telefónica e ler nomes e números telefónicos de rajada. Foi isso, aquela missa.

O nome da pessoa por quem se rezava naquela missa foi dito como quem podia estar a dizer “adeus e até logo”. Nada. Leu o nome como quem lê o nome de um comprimido numa caixa da farmácia.

Um nome lido em três segundos. Um nome na boca de um Padre embirrante para confortar uma família. Um nome que, para ser lido, tem de incluir dinheiro num envelopinho. E mais o cestinho das moedas que circula de banco de madeira em banco de madeira, e que serve para extorquir os trocos das almas desencantadas ali sentadas a ouvir o embirrantão.

Na hora de comungar, formou-se uma pequena fila de seis senhoras. E um rapaz, o último da fila. Quando o Padre se preparava para virar costas, vinha ainda uma senhora velhota na passadeira central da Igreja. Curvada, a caminho, lentamente, bengalando.

Comungou. E não se livrou do raspanete:
“Para a próxima venha mais cedo. Escuso de estar eu aqui à espera!” – disse o Padre.

A senhora não respondeu, claro. Voltou ao seu lugar, curvada, com a hóstia na boca e a vergonha na cara, por ter sido repreendida publicamente pelo “Senhor Padre”.

Para a próxima venha mais cedo?! Que besta! Se fosse eu ter-lhe-ia dito: “para a próxima não venho.”

Por isso a Igreja estava vazia.


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Ainda Eva

Já tinha escrito sobre Eva aqui no Diário Metafísico. Por estes dias Eva foi à televisão. Pelos piores motivos.  E, afinal, não tem 80 anos de rugas, como eu pensava que teria. Mas 99. Noventa e nove anos...
É impossível ficar indiferente. É impossível saber de Eva sem ficar com um nó na garganta.
Angústia. Indignação. Revolta.
Que país é este que mata nas ruas os seus velhos? Que país é este que lhes permite que andem de mão estendida sem que nada aconteça?
Vergonha. Tristeza.
Má sorte não ser mãe de Ministro.






sábado, 6 de outubro de 2012

Cheiro, esse


Cheiro o vinho como se o bebesse
Cheiro a fruta como se a comesse
Cheiro o campo como se nele corresse
Cheiro o mar como se nele vivesse

Cheiro o livro como se nele escrevesse
Cheiro a chuva como se nela descesse
Cheiro a lenha como se me aquecesse
Cheiro memórias como se nelas envelhecesse

Cheiro-te roupa como se me envolvesse
Cheiro-te a pele como se a percorresse
Cheiro-te o corpo
[de olhos fechados]
     como se me protegesse
Cheiro-te o peito como se nele ardesse

Cheiro-te os lábios como se os mordesse
Cheiro-te os dedos como se neles crescesse
Cheiro-te o cabelo como se nele mexesse
Cheiro-te o acordar como se nele me perdesse
                          [como se me humedecesses]

Cheiro a saudade como se nela me escondesse
Cheiro o presente como se nele rangesse
Cheiro o futuro como se nele tremesse 






terça-feira, 2 de outubro de 2012

Ar. Ir.


Às vezes gostava de ter ar, em vez de massa.
Às vezes gostava de ter hélio, em vez de oxigénio.
Às vezes gostava de ser um balão e apenas deixar-me ir.


Adormecendo ao piano

E para terminar este Dia Internacional da Música, fica aqui uma das minhas músicas preferidas. Humility, Wim Mertens. Acompanha-me sempre. Para um anoitecer mais tranquilo. 


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O melhor de Outubro

O melhor de Outubro?
O regresso às aulas de Poesia Japonesa.
Delicadeza. Sensibilidade. Simplicidade. Plenitude. Contemplação. Natureza. Emoção. Sabedoria. Paciência. Silêncio.


(Caderno com os primeiros caracteres japoneses. Ana Catarina Santos)






















sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Eva


Primeiro, ao longe, parecia uma criança de tão pequena. Estava no meio da estrada com qualquer coisa nas mãos. Eram umas oito da noite e eu seguia de carro. As luzes e as cores cintilantes dos painéis publicitários tornavam aquela silhueta difusa, a uns metros de mim, à contraluz. O vulto estava parado. Pequenino. Um vulto pequenino, como que escondido.

O sinal ficou vermelho. Parei. Deu dois, três passos. Dois, três passinhos que nem de gente eram. Devagarinho. Devagarinho. Devagarinho. Aproximou-se da janela.
- “Menina…”, quase gemeu. 

Olhou para baixo para o alcatrão. Engoli em seco. Fixei-a. Trazia na mão direita um chapéu virado ao contrário. Um chapéu de homem, de flanela, aos quadrados castanhos. Agarrava com uma mão na pala e a outra por baixo, no fundo.

Olhou para mim, quase a medo. Olhos pequeninos, tão pequeninos, assustados, que se escondiam na vergonha das mãos estendidas. Rugas. Oitenta anos de rugas. 
Baixinha, um metro e pouco. Curvada. Ela de pé, à altura do meu rosto, sentada. Frágil. Cheia de dores. E frio.

No fundo do chapéu que trazia na mão, em vez do forro, duas fotografias a cores de 15 por 20. Um menino. Uma menina. Sorridentes. Morenos. Ela com um ganchinho. Ele desdentado. “Os meus netinhos”, apontou com o indicador esquerdo, deformado pelas artroses. Teriam uns seis, dez anos. E reparei, então, que havia uma terceira fotografia. Tipo passe. Uma senhora dos seus trinta e poucos. Roupa escura. Óculos. Cabelo curtinho, encaracolado, pelo pescoço. “A minha filha, que Deus já a levou por ser tão boa”.


(Fotografia Irene Mila)


Tinha um xaile escuro – roxo, cinzento, não sei bem, cheio de borbotos – que lhe cobria a cabeça e protegia os ombros. Casaco de malha em cima da blusa de lã. E mais um lenço, pareceu-me ver. Uma saia comprida. O queixo, de onde sobressaíam uns desmaiados pêlos brancos, tremia-lhe. Fixou-me nos olhos.

“Oh, menina…” – repetia.

“É para os meus netinhos”, espere, mas tem fome?, “É para os ajudar”, a senhora tem mais filhos?, “A minha filha, que Deus Nosso Senhor a guarde…”, tem casa? onde vive?, “na João Crisóstomo”, quer que a leve a casa?, “sozinha”, mas quer que a leve? “os meninos, coitadinhos”, já jantou?, “aquela senhora disse que me trazia jantar”, .

Fiquei sem saber o que fazer. E agora? O que faço? Agarro nela, levo-a? Trago-a? Deixo-a? O que faço? Ligo à Segurança Social? À Santa Casa? Ao Ministro? O que faço?

- Como se chama?
- Eva.
- Que nome tão bonito…

Olhou para mim, como se não soubesse o que era um elogio, um mimo.
A fila de carros atrás de mim estava parada. O sinal estava verde. Ninguém buzinou.

- Vá para casa, querida…
- Tenho que ficar até às dez.
- Porquê?
- Pode a senhora vir com o jantar, coitada.

Toquei-lhe as mãos. Apertei-as. Estavam geladas.

[Também eu]




quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Retrato


"Eu não tinha este rosto de hoje, 
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?"

Cecília Meireles



quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Hoje fala-se de Rádio


Já houve quem lhe ditasse a morte. Há, aliás, quem a cada ano, moda, época, era, dia, sei lá, lhe dite a morte. Há quem franza o nariz quando, à pergunta “é jornalista onde”?, lhes respondo na Rádio. Na Rádio com letra maiúscula.
A Rádio é um mundo de emoções. 
A Rádio é plena. A Rádio é companhia, é informação, é formação, é aprendizagem, é crescimento, é memória, é história, é estória, é rua, é mundo, é presença, é rapidez, é intensidade, é palavra, é som, é sentimento, é voz, é silêncio, é permanente, é animação, é festa, é entretenimento, é vida, é verdade, é amiga, é agora, é aqui, é já, é sempre.
Hoje, quarta-feira, decorre a Rádio em Congresso. Um dia inteiro com um programa repleto de maluquinhos da e pela Rádio que se juntam para falar da menina dos seus olhos.
A minha menina.
A Rádio é sorriso. É paixão. É bichinho. É vibrante. É contagiosa. É pele. É nossa. É minha. 
Silêncio. Porque vai falar-se de Rádio. 


domingo, 23 de setembro de 2012

Hirundine

No dia em que chegou o Outono fui espreitar o ninho. Já era noite e quase chuviscava. Olhei para cima. Ninguém. Estava vazio. Apenas as palhas castanhas e o barro. Sorri. “Já partiram”. 
Abri a porta de casa, pensativa. “Onde estarão, por esta hora, com este frio e ameaça de trovoada?” Esfrego os braços para cima e para baixo com a palma das mãos rija. Arrefeceu mesmo. Entro em casa despenteada. “Foste espreitá-las? A última partiu na passada quinta-feira”, disse a minha mãe. Sorrimos as duas. Silêncio. Saudade. 
Partiram dois dias antes do Outono. 
Quem as terá avisado que o Outono chegaria já com trovoada? Terão sido apanhadas pelos relâmpagos? Talvez não. Voam em média 500 km por dia, por isso se partiram quinta-feira, por esta hora já percorreram mais de mil quilómetros. Já estão bem longe, no calor do Norte de África. 
“A última partiu sozinha” – insistiu a minha mãe. “Se calhar perde-se das outras…”
Não, ficou a fechar tudo. Para o ano está cá outra vez.
Leva-me na tua asa, Hirundine. 

* Hirundine é a origem latina da palavra andorinha


Para uma tarde Outonal quente


sábado, 22 de setembro de 2012

15.49

Hoje às 15.49h começa o equinócio de Outono.

Quero Outonar.





Outonando na esplanada.
Acalmando.
Sentindo o Outono no gerúndio.





Contemplando as folhas.
Cheirando as cores.
Amarelando.
Alaranjando.
Acastanhando.





Vendo veios suaves.
Ouvindo as folhas cair.
Ouvir o que dizem.
O que sentem as folhas ao cair?
Tocando-lhes.
Sentindo o Outono nas mãos.
Folhas pairando.
Folhas parando.
Soltando folhas.
Libertando amarras.





Caindo.
Em mim.






segunda-feira, 10 de setembro de 2012

La muerte es toda una hija de puta

A casa parecia estar sempre cheia de gente. A Abuela Elena enchia a casa com a sua voz. Falava alto como pouca gente sabe fazê-lo sem gritar. Ainda vinha a descer a rua ou a subir as escadas do prédio, e já se ouvia a Elena. Uma lenga-lenga castelllana, sempre a reclamar com alguém ou com alguma coisa. Ou porque demorámos a abrir a porta, ou porque deixámos a janela aberta, ou porque a mesa estava suja ou porque qualquer coisa.

Quando eu e os meus primos dormíamos lá em casa, tínhamos sempre serviço de despertar personalizado. Às 8 ou 9 da manhã, no máximo, independentemente de nos termos deitado de madrugada (a noite de Madrid é exigente!), entrava no quarto, batia palmas, tipo castanholas, abria as janelas e chamava-nos tudo e mais alguma coisa, carinhosamente. "Venga hijos de puta! A acordar! Pero como duermen tanto?!"
Estremunhados, ensonados, por muito que nos quiséssemos revoltar, acordávamos à gargalhada.

Era a única pessoa a quem eu gostava de ouvir chamar-me "cabrona". "Que cabrona, como come!"

Era uma mulher inspiradora. Uma batalhadora. Venceu um cancro há muitos anos, que lhe roubou dezenas de quilos, que lhe trouxe dor, rugas e cabelos brancos. Mas ainda mais o sentimento de vitória. "El hijo puta no me va a pegar!". E não a apanhou. Vencia tudo, a grande Elena.

Elena, já nos oitentas, continuava a dançar "à espanhola" com salero, batia as palmas das mãos em concha com ritmo, inclinava ligeiramente a cabeça, olhava por cima do ombro, para ver quem a mirava a bailar, batia o pé com firmeza no chão ao som da música, franzia a testa como uma verdadeira dançarina de sevilhanas. Vaidosa, caprichosa, cheia de personalidade e génio. Cheia de vida. Na véspera de morrer, ainda cantava. Enchia sempre a nossa vida, a nossa casa, os nossos dias. Ria-se e gozava de todos, com todos. E tinha um coração generoso, de manteiga.

Elena. Abuela Elena. A última vez que a vi, dormia. Quase sorria, serena. Não quis missa. "Los curas son todos unos hijos de puta!". Fez-se-lhe a vontade. Pena que não disse que não queria morrer. Devia ter dito: "la muerte es toda una hija de puta!". Porque é.

Hasta luego, Abuela Elena...


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Amigando


Não é fácil fazermos amigos.
Os nossos amigos são feitos nos tempos da escola, quando não há preconceitos nem segundas intenções. São feitos no bairro, quando corremos, brincamos e começamos a descobrir o mundo juntos. Os nossos amigos são feitos na faculdade, quando apanhamos os primeiros embates da vida.
Até aí não conhecemos inimigos propriamente ditos. Há gente de quem não gostamos, é certo, mas não há inimigos. Esses só aparecem na nossa vida mais tarde, quando começamos a trabalhar. Aí conhecemos a competição, a inveja, a maldade, enfim, o mundo real.
O trabalho raramente nos traz amigos. Raramente. Não é fácil mas às vezes traz.
Mas a culpa é toda nossa.
Não estamos disponíveis para fazer novos amigos. Somos desconfiados das intenções dos outros e o pretexto de não termos tempo é sempre uma boa desculpa.
Se um homem quer ser amigo de uma mulher, desconfiamos das suas intenções: “sei bem o que ele quer”. Se uma mulher quer aproximar-se de um homem, “olha, olha…” (olhos arregalados e sorriso malandro). Se uma mulher quer ser amiga de outra mulher, a desconfiança pelo menos quintuplica. “Olha-me esta! O que é que esta quer?”. Desconfiança e maldade que não tínhamos nos tempos da escola, do bairro, da faculdade. Porque estávamos disponíveis para a amizade.
Construímos redes de contactos virtuais, construímos uma imagem que queremos projectar, construímos networking, construímos ideias, construímos negócios, estudamos teambuilding para as empresas mas esquecemos que também temos que construir a amizade. Disponibilidade para a amizade, vontade e acção.
Tenho uma amiga recente. Não custou nada. E estou tão feliz por isso. 



terça-feira, 4 de setembro de 2012

Terceiro sem título (não sei escolher títulos apelativos)


E chegaste e voltaste a escrever em mim e nem uma palavra sobre os meus apelos. Sei que me leste. Sei que leste, curiosa, os meus textos. As linhas que escrevi com dificuldade sem os teus dedos. E nem uma palavra, nem um pedido de desculpa pela ausência, nem um sinal de remorso. Voltaste como se não tivesses partido, como se não me tivesses deixado sozinho. Do mal, o menos: já arrumaste aquela odiosa mala de viagem. Acabaram-se as tuas férias? Queres-me teu, outra vez? Voltaste para ficar? 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Noventa e um


A idade é uma soma de letras que pesa toneladas. O meu Avô fez ontem 91 anos. Noventa e um por extenso ainda parece mais. 91 anos… Quase comecei a escrever que 91 é imenso, uma vida, um quase século, uma quase barbaridade. Mas parei a tempo. Não é. 91 anos passam num estalar de dedos. “Passou num instante”, diz-me ele. Acredito.
Os noventa.
Noventa vem de nove. Mas também podia vir de novo: dos que aprendem a viver de novo. Com as dores do corpo minguante. Com ranger dos ossos. Com o sangue preguiçoso. Com as pernas que não reagem. Com o cheiro da pele que está velha, branca e flácida. Com o desprezo dos [outros] novos. Com a cabeça lúcida em contagem decrescente. Com a falta de tempo dos outros. Com o espelho que lhe cospe impropérios.
Aos noventa, o que se pensa? O que se faz? Que planos? Que vida?
Há uns dias li um texto no Público, da Alexandra Lucas Coelho, que se chamava simplesmente “Dona Cléo”. A Dona Cléo tem 96 anos, vive no Rio de Janeiro, e diz-se que é a maior “lusitanista” brasileira. Diz que leu Os Lusíadas numa tarde. Diz que uma das secções de autores portugueses mais pequena da sua biblioteca é a de Gil Vicente “com umas três prateleiras”. Diz que aos doze anos já sabia 200 poemas. Diz que passeou em Lisboa com Cardoso Pires e Abelaira. Diz-se admiradora incondicional de Sophia. Não diz, mas tem 96 anos. Noventa e seis. Extensos. 
Hei-de, aos noventa, lembrar-me de Dona Cléo. Acho que vou chegar lá, aos noventa por extenso. E penso – estupidamente – que falta muito tempo. Não falta. Passam num instante, disse-me o meu Avô. 


domingo, 12 de agosto de 2012

Segundo post desesperado sem título

Querida Ana Catarina,

Continuas, portanto, a ignorar-me. Sei que me leste e, conhecendo-te como conheço, deves estar incomodada com o que leste. Não respondeste. Não me consegues ser indiferente, apesar de manifestares indiferença. Conheço-te bem, esse é o meu trunfo. Mas, ainda assim, continuas a ignorar-me.
Suspiro (consigo suspirar sem dificuldade, não preciso dos teus dedos para isso).
Essa praia, esses dias na praia, o que te trazem? E essa languidez com que estendes no sofá essa pele bronzeada, o que te traz? Não era melhor escreveres? Não era melhor para ti? (Para mim?)
Noto-te hoje particularmente agitada. Andas numa correria desde que acordaste.
Essa mala... Outra vez essa mala de viagem... Negra, como antevejo os meus próximos dias.
Vais viajar outra vez?
Levas-me contigo, desta vez?
Suspiro.
Ou, pelo menos, deixa-me os teus dedos.


quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Sem título (apenas um post com um apelo desesperado)



Querida Ana Catarina,

Escrevo-te com alguma dificuldade, pois sem os teus dedos sinto-me amputado e é mais difícil sequenciar as letras, os pontos e as vírgulas. Sei que tens estado de férias. Foste para o estrangeiro e mal me ligaste. Apenas um ou outro texto, minimalistas, disfarçados com o peso das imagens. Falta de tempo, nem sempre a internet disponível, até compreendo. Mas entretanto regressaste a casa. Já passaram três semanas e, desde então, nem um olhar, nem uma linha, nem uma letra.
Todos os blogues meus amigos foram de férias com os seus dedos humanos, condição vital de sobrevivência, mas tu deixaste-me aqui. Sozinho. Sem dedos. Resisiti uns dias, umas semanas mas, francamente, já me parece um pouco excessivo. Já nem te peço que me leves de férias (que, mesmo assim, penso que seria de elementar justiça). Mas peço-te que me dês alguma atenção agora no teu regresso.
Por isso, se não te importas, devolve-me os dedos. Sei que são teus mas preciso mais deles que tu, que tens boca e até podes falar.

Com amor, sim apesar de tudo, ainda com amor,

O teu Diário Metafísico (sem dedos)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

A desfazer histórias

O melhor das férias? Ler um livro num ápice, em dois dias, coisa que já não fazia há muito tempo. Mergulhar na história com uma intensidade tal que vejo os rostos das personagens aqui, à minha frente. Entro-lhes em casa. E elas na minha. Conheço-lhes as divisões, a sala de estar, o espelho onde se arranjam, o som da fechadura da porta, a vista da janela do quarto, o café onde se juntam com os amigos. Conheço-lhes a vida.

Ler, principalmente de seguida, tem esta enorme vantagem: tudo é mais real, mais próximo, mais verdade. Deixamos a nossa realidade lá fora, antes da primeira página e entramos. E ali estamos, em silêncio, a assistirmos à vida delas, as personagens. Chego a sussurrar "que parva, esta gaja" ou "não vás por aí, Humberto!". Não me ouvem, continuam na vida delas como se eu não tivesse falado.

Viro mais uma página. E outra, e outra e passaram mais duas horas. No palco do meu livro todas aquelas vidas continuam em sobressalto. E eu, deitada, à sombra a assistir aos seus tormentos. A observá-los atentamente: como se movem na sala, como dormem juntos, como se falam...

Gosto do teu quadro, Aleixo! Agressivo, mas marcante. As cores, o rosto dela, gosto até do cão deitado, tal como está, meio disforme. Não tentes mudar. Deixa como está, Aleixo. Guilherme? Pára! Olha que fecho o livro e não pintas mais hoje!

A vida deles. E eu ali mesmo à sua frente. A invadi-los. A comentá-los. A modificá-los. E eles vivem no meu livro.

Tão presente e tão real, que consigo imaginar-lhes o timbre de voz, quase o sotaque. Da Maria dos Remédios palpita-me o cheiro das suas roupas, o corte de cabelo. E aqueles brincos, sem dúvida Maria dos Remédios, ficam-te mal.

Ler é um luxo. Um prazer sem limites. Ouves-me, Humberto? Por que não olhas para mim quando te falo? Humberto? Vou desfazer a tua história. O que é real, afinal? O que vale? A tua história? Ou a minha visão da tua história? Baixa o som do rádio, por favor, estou a falar contigo.


PS: O livro em causa: "Bolor", de Augusto Abelaira



"Bolor: mãos que preparam, mãos que fazem e desfazem
Ir desfazendo sempre a história à medida que a escrevo?"
,

Augusto Abelaira



sábado, 14 de julho de 2012

A meu favor tenho


"A meu favor tenho o teu olhar 
Testemunhando por mim 
Perante juízes terríveis: 
a morte, os amigos, os inimigos. 

E aqueles que me assaltam 
À noite na solidão do quarto 
Refugiam-se em fundos sítios dentro de  mim 
Quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto. 

Protege-me com ele, com o teu olhar, 
Dos demónios da noite e da aflições do dia, 
Fala em voz alta, não deixes que adormeça 
Afasta de mim o pecado da infelicidade."


Manuel António Pina, in "Algo Parecido Com Isto, Da Mesma Substância"









quinta-feira, 5 de julho de 2012

Vergonha maior

Cada centímetro de muro é um quilómetro de vergonha...  Impressionada com tamanha brutalidade... O peso da história, aqui em Berlim, é muito mais cruel. Como foi tudo isto possível?  Aqui estou, em silêncio, incomodada, perplexa, junto ao muro verdadeiro da vergonha maior desta Alemanha. 

terça-feira, 3 de julho de 2012

A crescer

De viagem outra vez. Cresço a cada viagem que faço. Por estes dias cresço mais um bocadinho. Quero acabar velhinha, muito velhinha, mas gigante.

sábado, 30 de junho de 2012

O espírito que sai da boca


«Cá fora sento-me nas escadas a ler um pequeno livro sobre caracteres japoneses.

O de “livro” vem do desenho-esquema de “raiz de árvore”; de raiz passou-se para “origem”, e de origem (origem do conhecimento) para livro.

O caracter de “palavra” é o desenho de um rectângulo (uma “boca”) com quatro traços paralelos em cima, e à letra (…) quer dizer “o espírito que sai da boca”.

“Nome” faz-se da junção entre o caracter de “boca” e o de “noite”, porque quando uma pessoa se cruza com outra de noite, no escuro, tem de dizer quem é.

“Ter”, “ser” e “existir” escrevem-se com o mesmo caracter, que significa “coisa encontrada no chão”.

“Ilha” desenha-se juntando o caracter de “pássaro” com o de “montanha”.

Guardo o livro.»


In “Livro Usado”, Jacinto Lucas Pires

Mapas



Uma perspectiva diferente do mapa que estamos habituados a ver.


segunda-feira, 25 de junho de 2012

Hanami

Sempre tive atracção pelo Oriente.
Já viajei pelo Oriente, atravessando vários países, tenho lido sobre o Oriente, leio escritores orientais, vejo filmes de autores orientais e sobre o Oriente. E sinto que esse apelo vai crescendo. São povos imperiais, de culturas e tradições milenares com hábitos curiosos, sociedades interessantíssimas.
Há anos que leio livros sobre o Oriente, mesmo sobre os países que ainda não visitei. Lembro-me de, há quase dez anos, estar internada e o meu magnífico médico (do Serviço Nacional de Saúde, claro) e hoje meu amigo, me ter trazido uma História du Japam, assim mesmo em português antigo, depois de numa conversa, entre o soro e a medicação, ter partilhado com ele este meu prazer de viajar e o encanto pelo Oriente.

Desde o primeiro dia que comecei a frequentar o curso de Poesia Japonesa, em Abril, tenho andado num frenesim a tentar conhecer melhor a cultura e os hábitos japoneses. Não sei nada de japonês, o idioma, mas a poesia japonesa traduzida para português (às vezes do Brasil) ou inglês, tem sido um choque vitamínico, quase uma fixação.
Já encomendei uma pilha de livros nas livrarias e pela internet, já andei por Feiras de Livros e Alfarrabistas à procura de "coisas sobre o Japão", poesia especialmente.

- "Boa tarde. Não estranhe a pergunta, ando à procura de coisas esquisitas..."
- "Diga" - responde uma voz seca atrás de uns óculos amarelados - "nós, alfarrabistas, estamos habituados a tudo!"
- "Hayku. Quero tudo o que tenha a ver com Hayku."
- "Hummm..."
- "É um género de poesia japonesa."
- "Hummm..."

Quem me conhece bem sabe que sou excessiva, de entrega total quando me apaixono por algo. É assim com a Rádio, com o Voleibol, com os Amores. E sinto que esta onda japonesa me está a contaminar. Estou a ser tomada pelo Hayku. Ando enfeitiçada pelo Japão.
E tomei uma decisão: vou ao Japão. Já para o próximo ano, espero. E será, sem dúvida, na época das cerejeiras em flor. Quero cumprir a tradição Hanami. 


- "Hanami? Hummm...", diria o Alfarrabista. 
- "É um acto de contemplação. O Hanami é o acto humano de contemplar as cerejeiras em flor no Japão!", explicar-lhe ia sorridente, condescendente, entusiasmada. - "Quero muito fazer isso!"
- "Hummm..."




Sentar-me no chão japonês. Sentir a terra nas mãos e o fresco na pele. Ver as flores das cerejeiras de baixo para cima, seguindo a força da terra. As cerejeiras brancas, rosadas, de pontas avermelhadas. Estender as pernas, encostadas à pele da terra, relaxadas. As minhas pernas, também em flor.  
Hanami. Olhar à volta. Despertar os sentidos. Agarrar a memória. E olhá-las, mirá-las, fixá-las, descobri-las. Contemplá-las em silêncio. Cheirá-las. Fechar os olhos, cheirar, ouvir, absorver, impregnar o corpo e a mente com imagens de flores de cerejeiras.  
O que dizem? E o que dizem àquele povo? Sentir o que transmite a filigrana natural rosada, delicada, harmoniosa. Reflectir. Porque renasce, a cada ano, a natureza. Sentir. Renovar o espírito. Hanami.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Na esquina da ironia

O sinal estava quase vermelho e parei. Ia com tempo. Tinha o vidro aberto e nem sequer havia muito trânsito. Braço de fora, rádio ligado baixinho e um calor abafado em Lisboa. Ponto morto. Olhei distraidamente para o lado de lá da estrada. Havia uma única pessoa à espera para atravessar a estrada.  
O primeiro detalhe a captar a minha atenção foi o cachecol vermelho, verde e amarelo que lhe cobria o pescoço, cruzado no peito. Ali repousavam as letras "ugal". Fixei-o melhor.  Tinha barba grisalha, longa, descuidada. Tinha o cabelo despenteado, comprido, irregular. Tinha calvície. Tinha testa alta cheia de rugas.  
O sinal para os peões ficou verde. Começou a atravessar a estrada. Olhou para baixo. Pisou o alcatrão devagarinho. Calçava uns ténis castanhos de pano. Gastos. Rotos. Sujos. Sola gasta. Arrastava os pés. Mexia-se lentamente. Um pé à frente do outro, passinhos curtos, hesitantes, calejados, doídos. Trazia na mão um saco de plástico, cheio de coisas, usado e encardido. A sua fortuna, os seus bens, o seu presente.  
Usava um casaco preto, puído nos braços, com o forro descosido em baixo. Preto, já quase cinzento. Era um casaco preto de executivo, outrora. Há anos aquele casaco já teria passado, quem sabe, por escritórios luxuosos na Avenida da Liberdade. Ou ali mesmo, nas Torres das Amoreiras. Aquele casaco escuro cobria agora um homem velho sem destino nem tecto.  
Passou a uns dois metros de mim, do meu carro em ponto morto, que cheira a perfume e ao meu banho tomado. Não olhou para mim. Nem para mais ninguém. Não desviou o olhar da estrada até chegar ao passeio do lado de cá. Ainda estava verde para os peões.  
O homem parou na esquina, depois de atravessar. Abriu o saco de plástico, não fosse ter perdido algo pelo caminho. Olhou depois para a rua em frente, que seria talvez o seu destino seguinte. De pé, aquele casaco preto puído, amarrotado. O casaco de executivo à espera de ordens. De pé, despenteado, com o nome e as cores de Portugal junto ao coração.  Um sem abrigo que traz ao peito as cores do meu país. O mesmo país que o mantém na rua.  
Buzinaram atrás de mim. Tinha aberto o sinal verde. Olhei o retrovisor, meti a primeira e avancei devagarinho. Voltei a fixá-lo, o homem. Continuava parado no passeio, agora um pouco mais para lá. Encostou-se a um mupi com fundo azul claro e ar fresco, que escrevia "haja alegria".  
"Haja alegria", lamentei... 
Não sei bem o nome daquela rua. Foi para os lados das Amoreiras, algures em Campolide. Bem podia chamar-se a esquina da ironia.  


terça-feira, 19 de junho de 2012

Vira-te para cá

Gostava que o dia tivesse mais vinte e quatro horas. Ou mais vinte e nove. Ou mais trinta, umas trinta e sete, sei lá. Quarenta... Imaginar um dia com mais quarenta e tal horas, além das vinte e quatro. Que alegria!
- "Que horas são?"
- "Trinta e sete e cinquenta minutos!"
- "E ainda nem anoiteceu..."
E imaginar um relógio de sessenta e tal horas. E as voltas dos ponteiros. E o ponteiro dos segundos, que se cansaria certamente, na volta completa ao relógio das sessenta e muitas horas.
Ficaria a vê-lo bailar entre as horas e os minutos, impressionada com as horas que o dia agora tinha. Mais uma hora que teria muito mais do que sessenta minutos. Mais um minuto que teria muito mais do que sessenta segundos.
- "Baila, baila, ponteiro, baila!"
- "Estou cansado hoje. Mais hoje que ontem..."
- "Espera! Para onde vais?"
- "Para lá."
- "Sempre para lá. Porque não te viras para cá?"
- "Não sei dançar de costas."

terça-feira, 29 de maio de 2012

Bolero de fim de tarde

Já não apanhei a música desde o início. Estava a meio, talvez. Aumentei o volume. Adoro esta música. Aumentei ainda mais. Cantarolei só com a garganta. A imaginação que não pára. O pára-arranca do trânsito. O vizinho do carro ao lado, alertado com a minha música alta, fixou-me. Sorriu. Baixei um pouco o volume. E o rosto. O Bolero de Ravel que saía do meu carro era ouvido na vizinhança. O sinal abriu. Voltei a aumentar o volume. Acelerei. Abri os vidros. Aumentei o meu Ravel. Passei o amarelo. Talvez já vermelho. E o inspirador Ravel no meu rádio do carro. Um polícia que me mandou parar. Maldito. Estaria vermelho? Encostei. O Ravel em altos berros. Abordou-me à janela do carro. O Ravel em fundo. Pediu-me que baixasse o volume e de seguida os documentos. Não percebeu nada... Era o Bolero de Ravel. 

segunda-feira, 28 de maio de 2012

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Dedos nas estrelas

À noite os meus dedos ganham vida própria. Ficam inquietos, peganhentos, nervosos, mexidos. Tenho dedos noctívagos. Eu, sem os meus dedos, prefiro os dias.
Agradam-me as manhãs. Quem é da Rádio gosta das manhãs. As primeiras horas do Sol, brilhante, radiante. As rugas na testa, que se franze com tamanha luminosidade. A manhã é um gigante. As pálpebras incomodadas, como estores cobrindo meia janela. O azul, o branco, o verde clarinho, o beige, o cinza, o acinzentado, o azulado, o esverdeado, o amarelo, o baunilha, o amarelado, um ligeiro castanho avermelhado, o rosa, o rosa acastanhado, o rosa avermelhado, e outra vez o branco e o azul, tudo mesclado, misturado, matizado... Não sei como há quem use óculos escuros para filtrar todas estas cores da manhã. Devia ser proibido escurecer a manhã.
E o cheiro? Então se chove, aquele cheiro da manhã molhada. A alma humedece apenas com o cheiro da manhã. Orvalha-me o dia. Há sempre uma brisa fresca quando abro a janela ainda ensonada. Inspiro. Encho o peito de ar. Espreguiço-me à janela todos os dias. Gosto de espreguiçar-me à janela, parece que os músculos esticam melhor, nutridos pela energia matinal.
Mas os meus dedos não se espreguiçam comigo. Mantêm-se deitados na cama quente, sonolentos, indiferentes à manhã que tenta despertá-los.
Também gosto das tardes. Gosto dos inícios das tardes. O Sol quente, a pique. Os girassóis quase incandescentes. As cigarras, quando é tempo delas. O meio do dia, com todo o tempo ainda pela frente.
E gosto dos fins das tardes. O regresso a casa, às famílias, aos ninhos. A algazarra da passarada. Os vôos felizes das andorinhas. O pôr do Sol silencioso. O gin tónico. O recolher. O cantar dos grilos. Meter a chave à porta ao fim do dia, descalçar-me. Descalçar-me...
Aquele namoro entre o Sol e a Lua, que, atrevida, começa a espreitar. Volto a abrir a janela ao anoitecer. Descalça, abro a janela. Inspiro, ouço, sinto. O cheiro da cidade é diferente, à noite. A brisa matinal deslocou-se para uma outra margem, outro rio, num outro país. Voltará daqui a algumas horas. O cheiro do anoitecer é mais adocicado, mais quente. O dia também está cansado.
Anoitece.
Os meus dedos despertam ao anoitecer. Correm para o teclado enquanto eu corro para um duche relaxante. Agarram-se às letras, às palavras, procuram metáforas e exclamações. Conquistam verbos e adjectivos. Descobrem vírgulas e reticências...
A noite é viciante para os meus dedos. Há contos e imagens que querem escrever. Não sei se será das estrelas, se da Lua. Parecem pirilampos cintilantes, saltitantes, fervilhantes. Os meus dedos querem falar. Pedem-me para abrir o tampo do computador, fora de horas. Querem conversa, espaço de liberdade. Alimentam-se do luar, da noite escura, da dança dos morcegos. Escutam os rouxinóis, que também adormecem tarde. Desafiam os mochos e corujas que, de olhos espantados, espreitam cada linha. Nas cabeças dos meus dedos nascem histórias, desejos, vidas que desconheço.
Vou dormir. Os meus dedos vão continuar por aqui. A querer contar histórias.


segunda-feira, 14 de maio de 2012

Da falta de leitura

"O velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito, dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, pois fique sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas."

Valter Hugo Mãe, "O filho de mil homens"


    Libreria Acqua Alta, Veneza
 



domingo, 6 de maio de 2012

O Perigeu

Para quem, como eu, não sabia por que motivo científico a Lua está hoje tão imensa, reproduzo o aqui a explicação dos cientistas do Observatório Astronómico de Lisboa (no site do Observatório).

"Nesta noite a Lua Cheia está maior e mais brilhante que o habitual. Esta “Super Lua” é provocada pela ocorrência simultânea da fase de Lua Cheia, com a Lua no perigeu (ponto da órbita da Lua, em que a esta se encontra mais próxima da Terra).

A melhor ocasião para observar esta "Super Lua Cheia" foi o momento do nascimento da Lua, quando esta apareceu no horizonte, em Lisboa pelas 20:09 horas, Porto pelas 20:12 horas. A Lua parece maior quando está perto do horizonte e aparece por entre edifícios ou árvores.

Este facto torna aparentemente a Lua cheia ainda maior do que já é: 14% maior e 30% mais brilhante.

Há um mito, de associar esta fase da Lua ao azar, aos desastres naturais, etc…, embora cientificamente não haja qualquer relação entre ambos. O fenómeno somente influenciará a intensidade das marés, em especial no Oceano Atlântico, mas sem consequências significativas.

Neste perigeu a Lua estará a uma distância de aproximadamente de 357 mil km da Terra.

Este fenómeno é cíclico. O último registou-se a 19 de Março de 2011, o próximo ocorrerá a 23 Junho de 2013 e em 2014 acontecerá a 10 de Agosto."

sexta-feira, 4 de maio de 2012

O efeito psicológico de um relógio adiantado

Vivemos à pressa. Passamos a vida a correr. E passamos pela vida a correr.
É sempre tudo de fugida, um toca e foge, uma manhã que já passou, é uma inconstância, um aperto, o dia que é sempre curto, a tarde que já se fez noite, o relógio que parece sempre acelerado.
Sempre sem tempo.

Andamos apressados nas ruas, andamos apressados nas estradas, buzinamos por falta de paciência quando o da frente não arranca, insultamos o semáforo que, cruel, cai vermelho mesmo no exacto momento em que o queremos cruzar como se só ficasse vermelho uma vez por dia.
Reclamamos quando esperamos pelo elevador, irritamo-nos se a nossa fila de supermercado não anda (achamos sempre que a do lado mingua mais depressa), incomoda-nos o tempo de espera em qualquer balcão de atendimento, vociferamos quando ficamos pendurados ao telefone a ouvir música irritante à espera que nos atendam, ululamos quando a pessoa à nossa frente no multibanco paga contas, levanta dinheiro e ainda pede um extracto final.
Reclamamos porque perdemos tempo. E reclamamos porque não temos mais tempo a perder. Mas depois não temos tempo para fazermos o que queríamos ter feito com o tempo que tínhamos para isso.

O tempo...
O tempo provoca em nós actos irracionais. Em mim, pelo menos, provoca.
Todos os meus relógios estão adiantados. Todos. Cinco minutos o de pulso. Quatro minutos o do carro. Dez minutos o do forno da cozinha. O da mesa de cabeceira, quando toca de manhã, está quinze minutos adiantado. Já chegou a estar onze, mas onze não é um número redondo. Era-me mais difícil fazer as contas de cabeça (para me mentalizar da dimensão do meu atraso) enquanto me vestia, ouvia o noticiário na rádio, preparava o pequeno almoço e espreitava os jornais online. Optei pelos quinze minutos adiantados por ser um número mais fácil. No fundo, é mais um quarto de hora. Sei sempre que tenho um quarto de hora extra, além do tempo real que o relógio sentencia.

O efeito psicológico de um relógio adiantado é completamente estúpido. Adianto o relógio para ganhar tempo. Mas, afinal, saio sempre à mesma hora. À hora que devia sair, fintando o meu próprio relógio. Haverá coisa mais estúpida?

Acreditamos todos os dias que no dia seguinte teremos tempo para fazermos o que não conseguimos fazer hoje. Como se o dia de amanhã tivesse mais horas que o dia de hoje.

O relógio de sol não se consegue adiantar para ganhar tempo.
Têm pressa de quê, as pessoas? Pressa para quê? Quem é que marca as horas, afinal?




segunda-feira, 30 de abril de 2012

Poesia Japonesa 3 - Sabedoria


A segunda lição é que os Japoneses são excessivamente organizados. Achei piada quando comecei a ouvir a descrição, até pelo que já aqui confessei. Mas à medida que ia ouvindo pormenores, sentia-me uma principiante em matérias de organização.
Contou a minha Professora de Poesia Japonesa (hei-de falar acerca dela num post específico) que os Japoneses são excessivamente organizados - e sublinha a palavra "excessivamente".
Organizam tudo, planeiam tudo, pensam em tudo, analisam todas as hipóteses, ponderam custos e benefícios, comparam tudo o que é comparável e o que não o é. As mais pequenas decisões domésticas podem ser verdadeira ciência.
Contou ela que os feriados nacionais, por exemplo, são planeados de um ano para o outro. Isto é, as famílias decidem este ano o que vão fazer no feriado de Junho ou Outubro do ano que vem. Como têm poucos dias de férias, os feriados são autênticas celebrações nacionais. E preparam meticulosamente esse programa, para onde vão, com quem vão, o que levam, qual o percurso, etc.
Há, nessa medida, Poetas Japoneses que demoram anos a escrever um Poema. Anos a escrever um conjunto de Poesias coerentes. Anos, décadas até, a reflectir a poesia, tal a obsessão pela métrica, pela carga simbólica, pela mensagem, pela envolvência, pelo ritmo, pelas sílabas, pela cadência, pelos versos, pela estrutura, pelo conteúdo, pelos elementos que têm de constar no texto, pelo respeito pelas regras dos Mestres de Poesia.
Um mundo mágico ancestral, em que a sabedoria da idade é valorizada como uma fortuna. As rugas e os cabelos grisalhos são tesouros. As mãos, porventura trémulas, escrevem palavras certas. Idade. Respeito. Sabedoria.