terça-feira, 29 de maio de 2012

Bolero de fim de tarde

Já não apanhei a música desde o início. Estava a meio, talvez. Aumentei o volume. Adoro esta música. Aumentei ainda mais. Cantarolei só com a garganta. A imaginação que não pára. O pára-arranca do trânsito. O vizinho do carro ao lado, alertado com a minha música alta, fixou-me. Sorriu. Baixei um pouco o volume. E o rosto. O Bolero de Ravel que saía do meu carro era ouvido na vizinhança. O sinal abriu. Voltei a aumentar o volume. Acelerei. Abri os vidros. Aumentei o meu Ravel. Passei o amarelo. Talvez já vermelho. E o inspirador Ravel no meu rádio do carro. Um polícia que me mandou parar. Maldito. Estaria vermelho? Encostei. O Ravel em altos berros. Abordou-me à janela do carro. O Ravel em fundo. Pediu-me que baixasse o volume e de seguida os documentos. Não percebeu nada... Era o Bolero de Ravel. 

segunda-feira, 28 de maio de 2012

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Dedos nas estrelas

À noite os meus dedos ganham vida própria. Ficam inquietos, peganhentos, nervosos, mexidos. Tenho dedos noctívagos. Eu, sem os meus dedos, prefiro os dias.
Agradam-me as manhãs. Quem é da Rádio gosta das manhãs. As primeiras horas do Sol, brilhante, radiante. As rugas na testa, que se franze com tamanha luminosidade. A manhã é um gigante. As pálpebras incomodadas, como estores cobrindo meia janela. O azul, o branco, o verde clarinho, o beige, o cinza, o acinzentado, o azulado, o esverdeado, o amarelo, o baunilha, o amarelado, um ligeiro castanho avermelhado, o rosa, o rosa acastanhado, o rosa avermelhado, e outra vez o branco e o azul, tudo mesclado, misturado, matizado... Não sei como há quem use óculos escuros para filtrar todas estas cores da manhã. Devia ser proibido escurecer a manhã.
E o cheiro? Então se chove, aquele cheiro da manhã molhada. A alma humedece apenas com o cheiro da manhã. Orvalha-me o dia. Há sempre uma brisa fresca quando abro a janela ainda ensonada. Inspiro. Encho o peito de ar. Espreguiço-me à janela todos os dias. Gosto de espreguiçar-me à janela, parece que os músculos esticam melhor, nutridos pela energia matinal.
Mas os meus dedos não se espreguiçam comigo. Mantêm-se deitados na cama quente, sonolentos, indiferentes à manhã que tenta despertá-los.
Também gosto das tardes. Gosto dos inícios das tardes. O Sol quente, a pique. Os girassóis quase incandescentes. As cigarras, quando é tempo delas. O meio do dia, com todo o tempo ainda pela frente.
E gosto dos fins das tardes. O regresso a casa, às famílias, aos ninhos. A algazarra da passarada. Os vôos felizes das andorinhas. O pôr do Sol silencioso. O gin tónico. O recolher. O cantar dos grilos. Meter a chave à porta ao fim do dia, descalçar-me. Descalçar-me...
Aquele namoro entre o Sol e a Lua, que, atrevida, começa a espreitar. Volto a abrir a janela ao anoitecer. Descalça, abro a janela. Inspiro, ouço, sinto. O cheiro da cidade é diferente, à noite. A brisa matinal deslocou-se para uma outra margem, outro rio, num outro país. Voltará daqui a algumas horas. O cheiro do anoitecer é mais adocicado, mais quente. O dia também está cansado.
Anoitece.
Os meus dedos despertam ao anoitecer. Correm para o teclado enquanto eu corro para um duche relaxante. Agarram-se às letras, às palavras, procuram metáforas e exclamações. Conquistam verbos e adjectivos. Descobrem vírgulas e reticências...
A noite é viciante para os meus dedos. Há contos e imagens que querem escrever. Não sei se será das estrelas, se da Lua. Parecem pirilampos cintilantes, saltitantes, fervilhantes. Os meus dedos querem falar. Pedem-me para abrir o tampo do computador, fora de horas. Querem conversa, espaço de liberdade. Alimentam-se do luar, da noite escura, da dança dos morcegos. Escutam os rouxinóis, que também adormecem tarde. Desafiam os mochos e corujas que, de olhos espantados, espreitam cada linha. Nas cabeças dos meus dedos nascem histórias, desejos, vidas que desconheço.
Vou dormir. Os meus dedos vão continuar por aqui. A querer contar histórias.


segunda-feira, 14 de maio de 2012

Da falta de leitura

"O velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito, dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, pois fique sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas."

Valter Hugo Mãe, "O filho de mil homens"


    Libreria Acqua Alta, Veneza
 



domingo, 6 de maio de 2012

O Perigeu

Para quem, como eu, não sabia por que motivo científico a Lua está hoje tão imensa, reproduzo o aqui a explicação dos cientistas do Observatório Astronómico de Lisboa (no site do Observatório).

"Nesta noite a Lua Cheia está maior e mais brilhante que o habitual. Esta “Super Lua” é provocada pela ocorrência simultânea da fase de Lua Cheia, com a Lua no perigeu (ponto da órbita da Lua, em que a esta se encontra mais próxima da Terra).

A melhor ocasião para observar esta "Super Lua Cheia" foi o momento do nascimento da Lua, quando esta apareceu no horizonte, em Lisboa pelas 20:09 horas, Porto pelas 20:12 horas. A Lua parece maior quando está perto do horizonte e aparece por entre edifícios ou árvores.

Este facto torna aparentemente a Lua cheia ainda maior do que já é: 14% maior e 30% mais brilhante.

Há um mito, de associar esta fase da Lua ao azar, aos desastres naturais, etc…, embora cientificamente não haja qualquer relação entre ambos. O fenómeno somente influenciará a intensidade das marés, em especial no Oceano Atlântico, mas sem consequências significativas.

Neste perigeu a Lua estará a uma distância de aproximadamente de 357 mil km da Terra.

Este fenómeno é cíclico. O último registou-se a 19 de Março de 2011, o próximo ocorrerá a 23 Junho de 2013 e em 2014 acontecerá a 10 de Agosto."

sexta-feira, 4 de maio de 2012

O efeito psicológico de um relógio adiantado

Vivemos à pressa. Passamos a vida a correr. E passamos pela vida a correr.
É sempre tudo de fugida, um toca e foge, uma manhã que já passou, é uma inconstância, um aperto, o dia que é sempre curto, a tarde que já se fez noite, o relógio que parece sempre acelerado.
Sempre sem tempo.

Andamos apressados nas ruas, andamos apressados nas estradas, buzinamos por falta de paciência quando o da frente não arranca, insultamos o semáforo que, cruel, cai vermelho mesmo no exacto momento em que o queremos cruzar como se só ficasse vermelho uma vez por dia.
Reclamamos quando esperamos pelo elevador, irritamo-nos se a nossa fila de supermercado não anda (achamos sempre que a do lado mingua mais depressa), incomoda-nos o tempo de espera em qualquer balcão de atendimento, vociferamos quando ficamos pendurados ao telefone a ouvir música irritante à espera que nos atendam, ululamos quando a pessoa à nossa frente no multibanco paga contas, levanta dinheiro e ainda pede um extracto final.
Reclamamos porque perdemos tempo. E reclamamos porque não temos mais tempo a perder. Mas depois não temos tempo para fazermos o que queríamos ter feito com o tempo que tínhamos para isso.

O tempo...
O tempo provoca em nós actos irracionais. Em mim, pelo menos, provoca.
Todos os meus relógios estão adiantados. Todos. Cinco minutos o de pulso. Quatro minutos o do carro. Dez minutos o do forno da cozinha. O da mesa de cabeceira, quando toca de manhã, está quinze minutos adiantado. Já chegou a estar onze, mas onze não é um número redondo. Era-me mais difícil fazer as contas de cabeça (para me mentalizar da dimensão do meu atraso) enquanto me vestia, ouvia o noticiário na rádio, preparava o pequeno almoço e espreitava os jornais online. Optei pelos quinze minutos adiantados por ser um número mais fácil. No fundo, é mais um quarto de hora. Sei sempre que tenho um quarto de hora extra, além do tempo real que o relógio sentencia.

O efeito psicológico de um relógio adiantado é completamente estúpido. Adianto o relógio para ganhar tempo. Mas, afinal, saio sempre à mesma hora. À hora que devia sair, fintando o meu próprio relógio. Haverá coisa mais estúpida?

Acreditamos todos os dias que no dia seguinte teremos tempo para fazermos o que não conseguimos fazer hoje. Como se o dia de amanhã tivesse mais horas que o dia de hoje.

O relógio de sol não se consegue adiantar para ganhar tempo.
Têm pressa de quê, as pessoas? Pressa para quê? Quem é que marca as horas, afinal?