sábado, 30 de junho de 2012

O espírito que sai da boca


«Cá fora sento-me nas escadas a ler um pequeno livro sobre caracteres japoneses.

O de “livro” vem do desenho-esquema de “raiz de árvore”; de raiz passou-se para “origem”, e de origem (origem do conhecimento) para livro.

O caracter de “palavra” é o desenho de um rectângulo (uma “boca”) com quatro traços paralelos em cima, e à letra (…) quer dizer “o espírito que sai da boca”.

“Nome” faz-se da junção entre o caracter de “boca” e o de “noite”, porque quando uma pessoa se cruza com outra de noite, no escuro, tem de dizer quem é.

“Ter”, “ser” e “existir” escrevem-se com o mesmo caracter, que significa “coisa encontrada no chão”.

“Ilha” desenha-se juntando o caracter de “pássaro” com o de “montanha”.

Guardo o livro.»


In “Livro Usado”, Jacinto Lucas Pires

Mapas



Uma perspectiva diferente do mapa que estamos habituados a ver.


segunda-feira, 25 de junho de 2012

Hanami

Sempre tive atracção pelo Oriente.
Já viajei pelo Oriente, atravessando vários países, tenho lido sobre o Oriente, leio escritores orientais, vejo filmes de autores orientais e sobre o Oriente. E sinto que esse apelo vai crescendo. São povos imperiais, de culturas e tradições milenares com hábitos curiosos, sociedades interessantíssimas.
Há anos que leio livros sobre o Oriente, mesmo sobre os países que ainda não visitei. Lembro-me de, há quase dez anos, estar internada e o meu magnífico médico (do Serviço Nacional de Saúde, claro) e hoje meu amigo, me ter trazido uma História du Japam, assim mesmo em português antigo, depois de numa conversa, entre o soro e a medicação, ter partilhado com ele este meu prazer de viajar e o encanto pelo Oriente.

Desde o primeiro dia que comecei a frequentar o curso de Poesia Japonesa, em Abril, tenho andado num frenesim a tentar conhecer melhor a cultura e os hábitos japoneses. Não sei nada de japonês, o idioma, mas a poesia japonesa traduzida para português (às vezes do Brasil) ou inglês, tem sido um choque vitamínico, quase uma fixação.
Já encomendei uma pilha de livros nas livrarias e pela internet, já andei por Feiras de Livros e Alfarrabistas à procura de "coisas sobre o Japão", poesia especialmente.

- "Boa tarde. Não estranhe a pergunta, ando à procura de coisas esquisitas..."
- "Diga" - responde uma voz seca atrás de uns óculos amarelados - "nós, alfarrabistas, estamos habituados a tudo!"
- "Hayku. Quero tudo o que tenha a ver com Hayku."
- "Hummm..."
- "É um género de poesia japonesa."
- "Hummm..."

Quem me conhece bem sabe que sou excessiva, de entrega total quando me apaixono por algo. É assim com a Rádio, com o Voleibol, com os Amores. E sinto que esta onda japonesa me está a contaminar. Estou a ser tomada pelo Hayku. Ando enfeitiçada pelo Japão.
E tomei uma decisão: vou ao Japão. Já para o próximo ano, espero. E será, sem dúvida, na época das cerejeiras em flor. Quero cumprir a tradição Hanami. 


- "Hanami? Hummm...", diria o Alfarrabista. 
- "É um acto de contemplação. O Hanami é o acto humano de contemplar as cerejeiras em flor no Japão!", explicar-lhe ia sorridente, condescendente, entusiasmada. - "Quero muito fazer isso!"
- "Hummm..."




Sentar-me no chão japonês. Sentir a terra nas mãos e o fresco na pele. Ver as flores das cerejeiras de baixo para cima, seguindo a força da terra. As cerejeiras brancas, rosadas, de pontas avermelhadas. Estender as pernas, encostadas à pele da terra, relaxadas. As minhas pernas, também em flor.  
Hanami. Olhar à volta. Despertar os sentidos. Agarrar a memória. E olhá-las, mirá-las, fixá-las, descobri-las. Contemplá-las em silêncio. Cheirá-las. Fechar os olhos, cheirar, ouvir, absorver, impregnar o corpo e a mente com imagens de flores de cerejeiras.  
O que dizem? E o que dizem àquele povo? Sentir o que transmite a filigrana natural rosada, delicada, harmoniosa. Reflectir. Porque renasce, a cada ano, a natureza. Sentir. Renovar o espírito. Hanami.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Na esquina da ironia

O sinal estava quase vermelho e parei. Ia com tempo. Tinha o vidro aberto e nem sequer havia muito trânsito. Braço de fora, rádio ligado baixinho e um calor abafado em Lisboa. Ponto morto. Olhei distraidamente para o lado de lá da estrada. Havia uma única pessoa à espera para atravessar a estrada.  
O primeiro detalhe a captar a minha atenção foi o cachecol vermelho, verde e amarelo que lhe cobria o pescoço, cruzado no peito. Ali repousavam as letras "ugal". Fixei-o melhor.  Tinha barba grisalha, longa, descuidada. Tinha o cabelo despenteado, comprido, irregular. Tinha calvície. Tinha testa alta cheia de rugas.  
O sinal para os peões ficou verde. Começou a atravessar a estrada. Olhou para baixo. Pisou o alcatrão devagarinho. Calçava uns ténis castanhos de pano. Gastos. Rotos. Sujos. Sola gasta. Arrastava os pés. Mexia-se lentamente. Um pé à frente do outro, passinhos curtos, hesitantes, calejados, doídos. Trazia na mão um saco de plástico, cheio de coisas, usado e encardido. A sua fortuna, os seus bens, o seu presente.  
Usava um casaco preto, puído nos braços, com o forro descosido em baixo. Preto, já quase cinzento. Era um casaco preto de executivo, outrora. Há anos aquele casaco já teria passado, quem sabe, por escritórios luxuosos na Avenida da Liberdade. Ou ali mesmo, nas Torres das Amoreiras. Aquele casaco escuro cobria agora um homem velho sem destino nem tecto.  
Passou a uns dois metros de mim, do meu carro em ponto morto, que cheira a perfume e ao meu banho tomado. Não olhou para mim. Nem para mais ninguém. Não desviou o olhar da estrada até chegar ao passeio do lado de cá. Ainda estava verde para os peões.  
O homem parou na esquina, depois de atravessar. Abriu o saco de plástico, não fosse ter perdido algo pelo caminho. Olhou depois para a rua em frente, que seria talvez o seu destino seguinte. De pé, aquele casaco preto puído, amarrotado. O casaco de executivo à espera de ordens. De pé, despenteado, com o nome e as cores de Portugal junto ao coração.  Um sem abrigo que traz ao peito as cores do meu país. O mesmo país que o mantém na rua.  
Buzinaram atrás de mim. Tinha aberto o sinal verde. Olhei o retrovisor, meti a primeira e avancei devagarinho. Voltei a fixá-lo, o homem. Continuava parado no passeio, agora um pouco mais para lá. Encostou-se a um mupi com fundo azul claro e ar fresco, que escrevia "haja alegria".  
"Haja alegria", lamentei... 
Não sei bem o nome daquela rua. Foi para os lados das Amoreiras, algures em Campolide. Bem podia chamar-se a esquina da ironia.  


terça-feira, 19 de junho de 2012

Vira-te para cá

Gostava que o dia tivesse mais vinte e quatro horas. Ou mais vinte e nove. Ou mais trinta, umas trinta e sete, sei lá. Quarenta... Imaginar um dia com mais quarenta e tal horas, além das vinte e quatro. Que alegria!
- "Que horas são?"
- "Trinta e sete e cinquenta minutos!"
- "E ainda nem anoiteceu..."
E imaginar um relógio de sessenta e tal horas. E as voltas dos ponteiros. E o ponteiro dos segundos, que se cansaria certamente, na volta completa ao relógio das sessenta e muitas horas.
Ficaria a vê-lo bailar entre as horas e os minutos, impressionada com as horas que o dia agora tinha. Mais uma hora que teria muito mais do que sessenta minutos. Mais um minuto que teria muito mais do que sessenta segundos.
- "Baila, baila, ponteiro, baila!"
- "Estou cansado hoje. Mais hoje que ontem..."
- "Espera! Para onde vais?"
- "Para lá."
- "Sempre para lá. Porque não te viras para cá?"
- "Não sei dançar de costas."