sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Eva


Primeiro, ao longe, parecia uma criança de tão pequena. Estava no meio da estrada com qualquer coisa nas mãos. Eram umas oito da noite e eu seguia de carro. As luzes e as cores cintilantes dos painéis publicitários tornavam aquela silhueta difusa, a uns metros de mim, à contraluz. O vulto estava parado. Pequenino. Um vulto pequenino, como que escondido.

O sinal ficou vermelho. Parei. Deu dois, três passos. Dois, três passinhos que nem de gente eram. Devagarinho. Devagarinho. Devagarinho. Aproximou-se da janela.
- “Menina…”, quase gemeu. 

Olhou para baixo para o alcatrão. Engoli em seco. Fixei-a. Trazia na mão direita um chapéu virado ao contrário. Um chapéu de homem, de flanela, aos quadrados castanhos. Agarrava com uma mão na pala e a outra por baixo, no fundo.

Olhou para mim, quase a medo. Olhos pequeninos, tão pequeninos, assustados, que se escondiam na vergonha das mãos estendidas. Rugas. Oitenta anos de rugas. 
Baixinha, um metro e pouco. Curvada. Ela de pé, à altura do meu rosto, sentada. Frágil. Cheia de dores. E frio.

No fundo do chapéu que trazia na mão, em vez do forro, duas fotografias a cores de 15 por 20. Um menino. Uma menina. Sorridentes. Morenos. Ela com um ganchinho. Ele desdentado. “Os meus netinhos”, apontou com o indicador esquerdo, deformado pelas artroses. Teriam uns seis, dez anos. E reparei, então, que havia uma terceira fotografia. Tipo passe. Uma senhora dos seus trinta e poucos. Roupa escura. Óculos. Cabelo curtinho, encaracolado, pelo pescoço. “A minha filha, que Deus já a levou por ser tão boa”.


(Fotografia Irene Mila)


Tinha um xaile escuro – roxo, cinzento, não sei bem, cheio de borbotos – que lhe cobria a cabeça e protegia os ombros. Casaco de malha em cima da blusa de lã. E mais um lenço, pareceu-me ver. Uma saia comprida. O queixo, de onde sobressaíam uns desmaiados pêlos brancos, tremia-lhe. Fixou-me nos olhos.

“Oh, menina…” – repetia.

“É para os meus netinhos”, espere, mas tem fome?, “É para os ajudar”, a senhora tem mais filhos?, “A minha filha, que Deus Nosso Senhor a guarde…”, tem casa? onde vive?, “na João Crisóstomo”, quer que a leve a casa?, “sozinha”, mas quer que a leve? “os meninos, coitadinhos”, já jantou?, “aquela senhora disse que me trazia jantar”, .

Fiquei sem saber o que fazer. E agora? O que faço? Agarro nela, levo-a? Trago-a? Deixo-a? O que faço? Ligo à Segurança Social? À Santa Casa? Ao Ministro? O que faço?

- Como se chama?
- Eva.
- Que nome tão bonito…

Olhou para mim, como se não soubesse o que era um elogio, um mimo.
A fila de carros atrás de mim estava parada. O sinal estava verde. Ninguém buzinou.

- Vá para casa, querida…
- Tenho que ficar até às dez.
- Porquê?
- Pode a senhora vir com o jantar, coitada.

Toquei-lhe as mãos. Apertei-as. Estavam geladas.

[Também eu]




quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Retrato


"Eu não tinha este rosto de hoje, 
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?"

Cecília Meireles



quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Hoje fala-se de Rádio


Já houve quem lhe ditasse a morte. Há, aliás, quem a cada ano, moda, época, era, dia, sei lá, lhe dite a morte. Há quem franza o nariz quando, à pergunta “é jornalista onde”?, lhes respondo na Rádio. Na Rádio com letra maiúscula.
A Rádio é um mundo de emoções. 
A Rádio é plena. A Rádio é companhia, é informação, é formação, é aprendizagem, é crescimento, é memória, é história, é estória, é rua, é mundo, é presença, é rapidez, é intensidade, é palavra, é som, é sentimento, é voz, é silêncio, é permanente, é animação, é festa, é entretenimento, é vida, é verdade, é amiga, é agora, é aqui, é já, é sempre.
Hoje, quarta-feira, decorre a Rádio em Congresso. Um dia inteiro com um programa repleto de maluquinhos da e pela Rádio que se juntam para falar da menina dos seus olhos.
A minha menina.
A Rádio é sorriso. É paixão. É bichinho. É vibrante. É contagiosa. É pele. É nossa. É minha. 
Silêncio. Porque vai falar-se de Rádio. 


domingo, 23 de setembro de 2012

Hirundine

No dia em que chegou o Outono fui espreitar o ninho. Já era noite e quase chuviscava. Olhei para cima. Ninguém. Estava vazio. Apenas as palhas castanhas e o barro. Sorri. “Já partiram”. 
Abri a porta de casa, pensativa. “Onde estarão, por esta hora, com este frio e ameaça de trovoada?” Esfrego os braços para cima e para baixo com a palma das mãos rija. Arrefeceu mesmo. Entro em casa despenteada. “Foste espreitá-las? A última partiu na passada quinta-feira”, disse a minha mãe. Sorrimos as duas. Silêncio. Saudade. 
Partiram dois dias antes do Outono. 
Quem as terá avisado que o Outono chegaria já com trovoada? Terão sido apanhadas pelos relâmpagos? Talvez não. Voam em média 500 km por dia, por isso se partiram quinta-feira, por esta hora já percorreram mais de mil quilómetros. Já estão bem longe, no calor do Norte de África. 
“A última partiu sozinha” – insistiu a minha mãe. “Se calhar perde-se das outras…”
Não, ficou a fechar tudo. Para o ano está cá outra vez.
Leva-me na tua asa, Hirundine. 

* Hirundine é a origem latina da palavra andorinha


Para uma tarde Outonal quente


sábado, 22 de setembro de 2012

15.49

Hoje às 15.49h começa o equinócio de Outono.

Quero Outonar.





Outonando na esplanada.
Acalmando.
Sentindo o Outono no gerúndio.





Contemplando as folhas.
Cheirando as cores.
Amarelando.
Alaranjando.
Acastanhando.





Vendo veios suaves.
Ouvindo as folhas cair.
Ouvir o que dizem.
O que sentem as folhas ao cair?
Tocando-lhes.
Sentindo o Outono nas mãos.
Folhas pairando.
Folhas parando.
Soltando folhas.
Libertando amarras.





Caindo.
Em mim.






segunda-feira, 10 de setembro de 2012

La muerte es toda una hija de puta

A casa parecia estar sempre cheia de gente. A Abuela Elena enchia a casa com a sua voz. Falava alto como pouca gente sabe fazê-lo sem gritar. Ainda vinha a descer a rua ou a subir as escadas do prédio, e já se ouvia a Elena. Uma lenga-lenga castelllana, sempre a reclamar com alguém ou com alguma coisa. Ou porque demorámos a abrir a porta, ou porque deixámos a janela aberta, ou porque a mesa estava suja ou porque qualquer coisa.

Quando eu e os meus primos dormíamos lá em casa, tínhamos sempre serviço de despertar personalizado. Às 8 ou 9 da manhã, no máximo, independentemente de nos termos deitado de madrugada (a noite de Madrid é exigente!), entrava no quarto, batia palmas, tipo castanholas, abria as janelas e chamava-nos tudo e mais alguma coisa, carinhosamente. "Venga hijos de puta! A acordar! Pero como duermen tanto?!"
Estremunhados, ensonados, por muito que nos quiséssemos revoltar, acordávamos à gargalhada.

Era a única pessoa a quem eu gostava de ouvir chamar-me "cabrona". "Que cabrona, como come!"

Era uma mulher inspiradora. Uma batalhadora. Venceu um cancro há muitos anos, que lhe roubou dezenas de quilos, que lhe trouxe dor, rugas e cabelos brancos. Mas ainda mais o sentimento de vitória. "El hijo puta no me va a pegar!". E não a apanhou. Vencia tudo, a grande Elena.

Elena, já nos oitentas, continuava a dançar "à espanhola" com salero, batia as palmas das mãos em concha com ritmo, inclinava ligeiramente a cabeça, olhava por cima do ombro, para ver quem a mirava a bailar, batia o pé com firmeza no chão ao som da música, franzia a testa como uma verdadeira dançarina de sevilhanas. Vaidosa, caprichosa, cheia de personalidade e génio. Cheia de vida. Na véspera de morrer, ainda cantava. Enchia sempre a nossa vida, a nossa casa, os nossos dias. Ria-se e gozava de todos, com todos. E tinha um coração generoso, de manteiga.

Elena. Abuela Elena. A última vez que a vi, dormia. Quase sorria, serena. Não quis missa. "Los curas son todos unos hijos de puta!". Fez-se-lhe a vontade. Pena que não disse que não queria morrer. Devia ter dito: "la muerte es toda una hija de puta!". Porque é.

Hasta luego, Abuela Elena...


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Amigando


Não é fácil fazermos amigos.
Os nossos amigos são feitos nos tempos da escola, quando não há preconceitos nem segundas intenções. São feitos no bairro, quando corremos, brincamos e começamos a descobrir o mundo juntos. Os nossos amigos são feitos na faculdade, quando apanhamos os primeiros embates da vida.
Até aí não conhecemos inimigos propriamente ditos. Há gente de quem não gostamos, é certo, mas não há inimigos. Esses só aparecem na nossa vida mais tarde, quando começamos a trabalhar. Aí conhecemos a competição, a inveja, a maldade, enfim, o mundo real.
O trabalho raramente nos traz amigos. Raramente. Não é fácil mas às vezes traz.
Mas a culpa é toda nossa.
Não estamos disponíveis para fazer novos amigos. Somos desconfiados das intenções dos outros e o pretexto de não termos tempo é sempre uma boa desculpa.
Se um homem quer ser amigo de uma mulher, desconfiamos das suas intenções: “sei bem o que ele quer”. Se uma mulher quer aproximar-se de um homem, “olha, olha…” (olhos arregalados e sorriso malandro). Se uma mulher quer ser amiga de outra mulher, a desconfiança pelo menos quintuplica. “Olha-me esta! O que é que esta quer?”. Desconfiança e maldade que não tínhamos nos tempos da escola, do bairro, da faculdade. Porque estávamos disponíveis para a amizade.
Construímos redes de contactos virtuais, construímos uma imagem que queremos projectar, construímos networking, construímos ideias, construímos negócios, estudamos teambuilding para as empresas mas esquecemos que também temos que construir a amizade. Disponibilidade para a amizade, vontade e acção.
Tenho uma amiga recente. Não custou nada. E estou tão feliz por isso. 



terça-feira, 4 de setembro de 2012

Terceiro sem título (não sei escolher títulos apelativos)


E chegaste e voltaste a escrever em mim e nem uma palavra sobre os meus apelos. Sei que me leste. Sei que leste, curiosa, os meus textos. As linhas que escrevi com dificuldade sem os teus dedos. E nem uma palavra, nem um pedido de desculpa pela ausência, nem um sinal de remorso. Voltaste como se não tivesses partido, como se não me tivesses deixado sozinho. Do mal, o menos: já arrumaste aquela odiosa mala de viagem. Acabaram-se as tuas férias? Queres-me teu, outra vez? Voltaste para ficar? 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Noventa e um


A idade é uma soma de letras que pesa toneladas. O meu Avô fez ontem 91 anos. Noventa e um por extenso ainda parece mais. 91 anos… Quase comecei a escrever que 91 é imenso, uma vida, um quase século, uma quase barbaridade. Mas parei a tempo. Não é. 91 anos passam num estalar de dedos. “Passou num instante”, diz-me ele. Acredito.
Os noventa.
Noventa vem de nove. Mas também podia vir de novo: dos que aprendem a viver de novo. Com as dores do corpo minguante. Com ranger dos ossos. Com o sangue preguiçoso. Com as pernas que não reagem. Com o cheiro da pele que está velha, branca e flácida. Com o desprezo dos [outros] novos. Com a cabeça lúcida em contagem decrescente. Com a falta de tempo dos outros. Com o espelho que lhe cospe impropérios.
Aos noventa, o que se pensa? O que se faz? Que planos? Que vida?
Há uns dias li um texto no Público, da Alexandra Lucas Coelho, que se chamava simplesmente “Dona Cléo”. A Dona Cléo tem 96 anos, vive no Rio de Janeiro, e diz-se que é a maior “lusitanista” brasileira. Diz que leu Os Lusíadas numa tarde. Diz que uma das secções de autores portugueses mais pequena da sua biblioteca é a de Gil Vicente “com umas três prateleiras”. Diz que aos doze anos já sabia 200 poemas. Diz que passeou em Lisboa com Cardoso Pires e Abelaira. Diz-se admiradora incondicional de Sophia. Não diz, mas tem 96 anos. Noventa e seis. Extensos. 
Hei-de, aos noventa, lembrar-me de Dona Cléo. Acho que vou chegar lá, aos noventa por extenso. E penso – estupidamente – que falta muito tempo. Não falta. Passam num instante, disse-me o meu Avô.