quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Parvo


Do amor. Da tempestade que abana todos os poros, dos sonhos invadidos, da pele molhada, da impaciência, da agitação, da falta de senso, do sono esquisito, da fome de agarrar, dos nervos, do esperar, do sorrir sem porquê, do acordar aquecido, do crepitar dentro, do olhar baralhado, da mão suada, do nariz detective, dos lábios mordidos. Do amor. Parvo.

Eros and Psyche - statue Antonio Canova

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Abriguei-me

Abriguei-me junto ao mar, mar salgado, meu amigo de sempre, que me ouve sem me interromper, que me atenta sem me repreender, que me abraça sem cobranças, que me acalma sem me aconselhar, que me faz sorrir sem que me aperceba. Meu amigo salgado, abrigo doce.







sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Cemitério de Guarda-Chuvas


Uma vareta para um lado, outra para outro, e outra ainda cravada no intervalo das pedras da calçada. A chuva de prata confunde-se com o metal. Um bocado de pano escuro, talvez castanho, encharcado. Vvvvvvvvvvvvvvvvv… Vvvvvvvvv... Abana, abana ao vento, suspenso entre as varetas. 
Chove tanto… A rua é um rio. A passadeira mal se vê na tarde escura. 
Mais um chapéu pelos ares. Parece um balão sem fio preso na mão do menino. Os limpa pára-brisas para lá, para cá, para lá, para cá. Tchuc-tchuc-tchuc-tchuc…

Os vidros embaciados deixam ver os faróis vermelhos, reluzentes, no carro da frente. A cortina de água bate nos vidros. Olha ali outro! Outro chapéu-de-chuva abandonado! Os braços de prata inertes no chão, cada um para seu lado. Está meio aberto e o pano rasgado é azul-turquesa [deve ser de senhora]. O cabo de madeira é em tons de mel e tem algo dourado [é de senhora, com toda a certeza]. Ali jaz, ao frio, à chuva, ao vento. Sozinho, abandonado, molhado, perdido, esquecido para sempre. Morto e não enterrado. Devia haver lápides: “aqui jaz o guarda-chuva que chegou a ser feliz em muitas mãos. Eterna saudade.”

A rua é um cemitério de guarda-chuvas. Chove. Pedaços de guarda-chuvas sem dono espalhados pelas pedras da calçada. Chove. Chove mesmo muito. O prateado, o cinzento, o azul-turquesa, os faróis vermelhos sumidos. Tchuc-tchuc-tchuc-tchuc… Os carros em fila passam por eles, indiferentes. Poças de água no cemitério dos guarda-chuvas.

Por que abandonam as pessoas os seus chapéus de chuva outrora queridos? Eles, que sempre protegeram as pessoas da chuva. Eles, que nunca lhes falharam. E à primeira que lhes falham, as pessoas largam-nos na rua. Largam-nos da mão. Literalmente. Desumanos!

“Aqui jaz o teu guarda-chuva triste e abandonado”
[espera, não chores, ele já vem, já sei que queres ir para casa, tens saudades daquelas mãos, mas tens que ter calma, não posso parar o carro assim sem mais nem menos, compreendes?, sei que esta não é a tua rua, nunca te vi por aqui, não chores por favor, queres que te faça um chá?]

Um cemitério de guarda-chuvas sem flores nem jeito nenhum.

As pessoas deviam levar os seus guarda-chuvas doentes para casa. Deviam tratar deles com carinho. Uma compressa humedecida em água morna, mercurocromo nas feridas, uma gaze na pega de madeira, ligaduras nas varetas contorcidas e pensos ou adesivos no tecido rasgado. Deviam levar-lhes flores com cartõezinhos. “Boas melhoras!” E não pára de chover. 
[chá de quê?]

Fotografia: Ana Catarina Santos

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Comprei um carrossel

E dá voltas e voltas. E sobe. E a música embala. Giro. Girando. Ondulando. E desce. E curva. Gira. E as crianças riem. E o chocolate quente. O gorro de lã. A neve. E o frio. E a música de corda. E as vozes nas ruas. E ele sobe. E gira. E dá mais uma volta. Cheira a chocolate. E as luvas. E o nariz vermelho mordido pelo frio. E as gargalhadas. E as luzes nas montras. E mais uma volta. A caixa de música que se cala. O vendedor de caixas aproxima-se do balcão. As crianças calam-se. O vendedor, de avental verde. Sorri. Levanta a caixa com a mão esquerda. Gira o pulso. Firme, firme. Dá à roda mais uma vez. Mão direita firme. E mais outra e outra ainda. A caixa de música volta a tocar. Música mais rápida. As luzes mudam de cor. O avental verde afasta-se. As crianças riem. O chão gelado. E a tenda a vender crêpes. E a outra dos queijos. E o casal de pé a comer "escargots". Falam francês. Neve. Vidros salpicados. O carrossel parou. A música de corda também. O avental verde. Roda. Roda. Roda. Roda. Música. Cachecol. Nariz frio. Frio. Cheira a chocolate. Un chocolat chaud, s'il vous plaît! Não sinto as moedas. Dedos rijos. O vapor da minha respiração. Neve. Merci. Música. Comprei um carrossel.